Nazistas atacam em Itacaré, por Ramayana Vargens

Ramayana Vargens

19 de agosto de 1942 – O Jacira, pequena embarcação que transportava 800 sacas de cacau, é afundado por um submarino nazista, em frente a Itacaré.  É a gota d’água que obriga o governo brasileiro a dar uma resposta firme aos ataques que vinham atingindo navios mercantes brasileiros ao longo do mar da Bahia. Três dias depois, Getúlio Vargas declara guerra à Alemanha e aos seus aliados.

O inofensivo veleiro Jacira era o sexto alvo que um solitário submarino alemão   (o U-507) mandava ao fundo, no intervalo de quatro dias, entre Sergipe e o sul da Bahia.  O pequeno barco, que saíra de Belmonte, naufragou em frente à foz do rio de Contas, em Itacaré. Foi o único que não teve vítimas fatais.  Nos ataques anteriores, cinco navios mercantes brasileiros foram torpedeados, deixando um saldo de 607 mortes.   

Pearl Harbor na Bahia

Antes de agosto de 1942, o Brasil já tinha perdido 14 navios durante a Segunda Guerra. Mas, até então, nunca sofrera ataques tão seguidos e violentos ao largo de seu litoral. Na noite de 15 de agosto, quando passava na altura da divisa entre Sergipe e Bahia, o navio Baependi foi alvejado por dois torpedos.  Afundou em cerca de 5 minutos, matando 270 pessoas, das 306 que estavam a bordo. A maioria dos passageiros era formada por militares do Exército, do 70 Grupo de Artilharia de Dorso que se transferia para Recife.

Poucas horas depois, na mesma área, o Araraquara também foi atingido.  Morreram 131 pessoas, das 142 que estavam embarcadas.  A terceira vítima foi o Aníbal Benévolo, atacado no amanhecer do dia 16, deixando 150 mortos – incluindo todos os 83 passageiros (16 eram crianças).  Apenas quatro tripulantes conseguiram se salvar.  Continuando sua missão devastadora, no dia seguinte, o U-507 torpedeou o Itagiba, um pequeno navio a vapor, no momento em que a tripulação (36 homens) almoçava. Não levava passageiros. Todos morreram. Como ficara na espreita, o submarino também disparou mais dois torpedos contra o Arará, outro pequeno cargueiro (carregado de sucata), que se aproximara para recolher os náufragos do Itagiba. Nenhum dos 20 homens a bordo conseguiu se salvar.   Dois dias depois seria vez do Jacira.

Terrorismo no mar  

A investida covarde do submarino nazista, ao largo da costa baiana, foi comparada, pela imprensa da época, com o ataque japonês em Pearl Harbor.  Os navios foram atingidos de traiçoeiramente, sem chances de defesa, e destruídos de forma cruel, em total desrespeito aos protocolos humanitários de guerra e aos códigos de honra dos homens do mar. Nos dias que se seguiram, começaram a chegar às praias do litoral baiano cadáveres inchados, malas e pertences dos passageiros e destroços dos navios. As fotografias das vítimas, e o quadro horrendo que os jornais descreviam, causaram grande comoção e impulsionaram a mobilização nacional a favor da entrada do Brasil na guerra.

Apesar de já ter rompido relações com a Alemanha (em janeiro de 1942), o Brasil era um país neutro.  Por isso, seus navios navegavam obedecendo às convenções internacionais – completamente iluminados, com identificação no casco, desarmados e sem necessidade de ziguezaguear para despistar submarinos. Como o país não estava em estado de guerra, tripulantes e passageiros não recebiam treinamento para emergências (como operações de  abandono rápido do navio e resgate no mar). 

As embarcações navegavam sem suspeitar do perigo e, como estavam próximas ao litoral, as luzes das cidades costeiras destacavam suas silhuetas, o que facilitava a visualização dos alvos para o submarino clandestino. O tipo de ataque desferido contra os barcos tinha o objetivo de causar o maior número possível de vítimas fatais. Eram disparados dois torpedos no intervalo de um minuto. Assim, além de ampliar a destruição e acelerar o afundamento do navio, aumentava o clima de pânico entre os sobreviventes. Até mesmo um cargueiro com as máquinas paradas (o Arará) foi atingido enquanto socorria os náufragos de outro barco.  Covarde e violenta, a emboscada naval dos alemães era a resposta desesperada dos nazistas, inconformados com a perda, para os aliados, da cooperação do Brasil. Em seus planos, Hitler sempre sonhou em ocupar o território brasileiro, como base indispensável para a conquista das Américas.

A guerra chega na região do cacau      

A navegação marítima de pequeno porte era vital para a sobrevivência e desenvolvimento da maioria dos municípios da Bahia – estado brasileiro com maior faixa litorânea.  Barcos à vela, como escunas, saveiros e barcaças, eram amplamente utilizados no litoral para transporte de carga e de passageiros. Devido à falta de estradas, pelo mar é que seguiam as mercadorias que abasteciam as cidades da costa e as comunidades interioranas ao longo dos rios que podiam ser navegados. Transportavam açúcar, sal, fumo, combustíveis, máquinas, tijolos, areia, brita, frutas, legumes e produtos industrializados. No sul da Bahia carregavam, principalmente, cacau, piaçava, coco e dendê.

O Jacira era um modesto veleiro de dois mastros que operava entre Salvador e a região cacaueira.  No dia 18 de agosto de 1942, às 7 horas da manhã, com seis pessoas a bordo, zarpou de Belmonte, no sul do estado, em direção à capital, carregado de cacau, coco, piaçava, banana, garrafas vazias e um caminhão desmontado. O proprietário e mestre do barco, Norberto Hilário dos Santos, liderava a tripulação. Com dia claro e um bom vento soprando do sudeste, a viagem corria tranquila a 10 milhas da costa. A rota traçada previa uma parada em Itacaré, onde havia carga contratada.  Por volta das 19 horas, mestre Norberto foi descansar na pequena cabine da embarcação e passou o comando para o contramestre Antenor, que deixou seu sobrinho Acelino assumir o leme. Perto de duas horas da madrugada, ouviram um estranho ruído se aproximando do barco. 

José Goes tinha 17 anos, em 1942, quando viajou para Salvador no mesmo navio que conduziu os sobreviventes do Jacira. Seu depoimento, registrado num site sobre o naufrágio do barco, traz um testemunho vivo sobre o episódio.

“Acelino gritou: Seu Antenor, pegue o leme! Vou chamar o mestre Norberto! Tou vendo o vulto e a bigodeira de uma lancha baixa que vem pra cima da gente! Antenor virou o leme, tentando sair da frente da embarcação que vinha para cima deles... Quando o mestre Norberto chegou o vulto já estava bastante perto e piscava uma luz azul.

– É um submarino! – gritou Norberto.

– Stop! Anhalt! Parieren! – chegaram os gritos pelo megafone do U-507.

A (barcaça) Jacira tentando desviar dirigia-se para alto mar. Vinte minutos depois, dois tiros de canhão e uma rajada de metralhadora traduziram a intenção de Harro Schacht, o comandante do U-507.”

O submarino aproximou-se e iluminou o barco com um holofote. Três tripulantes (um oficial e dois marinheiros) entraram num bote de borracha e se dirigiram ao veleiro.

“Subiram e apontaram as Lugers (pistolas automáticas) e falaram sem que fossem entendidos... apontaram as armas para os tripulantes e os empurraram até o bote da Jacira indicando por sinais que deveriam pô-lo na água e embarcarem. O mestre implorou, sem que entendessem, dizendo que aquele barco era seu ganha-pão...  Embarcaram e se afastaram em direção à terra.”

Tripulantes do submarino subiram no barco aprisionado e levaram frutas e mantimentos frescos. Depois de meia hora remando, os assustados brasileiros  viram as chamas e ouviram o barulho de explosões. Como o veleiro era frágil e de pequeno porte, não merecia o desperdício de alguns torpedos.  O velho Jacira foi estilhaçado com cargas de explosivos e tiros e canhão.

“Mestre Norberto não resistiu e chorou copiosamente”.

No meio da  manhã do dia 19, o bote com os sobreviventes chegou à praia de Serra Grande, a 15km ao sul de Itacaré. Só no dia seguinte conseguiram que um caminhão os levasse até Santo Antônio de Jesus, onde puderam transmitir para Salvador (via telégrafo da linha férrea) o relato do acontecido.

A Folha da Manhã (jornal precursor da atual Folha de São Paulo) de 22 de agosto destacou a notícia, distribuída pela Agência Nacional:

“O Sr. Edson Rocha, de Belmonte, Baía, telegrafou ao Presidente da República nos seguintes termos: Submarinos facínoras puseram a pique, hoje, a única embarcação de meu pai, de 86 toneladas, à vela, defronte a Itacaré, e também o único meio de subsistência. Deponho o caso nas mãos de V.Exa., confiante na solução das medidas que partirão de V. Exa. A quem hipoteco minha solidariedade.”

Mas mestre Norberto não teve muita sorte.  No inquérito instaurado pela Marinha foram comprovadas algumas irregularidades na embarcação e ele acabou sendo punido pela Capitania dos Portos da Bahia. Principalmente porque, entre os seis sobreviventes do Jacira, um deles viajava como passageiro clandestino.

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O autor é professor