Pelourinho é vital para as indústrias cultural e turística de Salvador

José Queiróz

Por mais estranho que possa parecer, o principal argumento utilizado para interromper a reforma do Pelourinho foi a suposta ameaça que o turismo representava para a população local, materializada pelo efetivo deslocamento de muitas pessoas. Eis um tema difícil de abordar, complexo, polêmico e explosivo! Porém, simples de solucionar. Basta um levantamento e a elaboração de um cadastro único dos imóveis tombados que pertencem a diferentes pessoas físicas e instituições, seus ocupantes na época da reforma, e os atuais. Muitos casarões abandonados foram - ou estão! - invadidos.

Isto não justifica a retirada de inquilinos com direitos adquiridos que, entretanto, não eram responsáveis pela manutenção que não vinha sendo realizada pelo Estado falido, até a implantação do Pólo Petroquímico, e muitos não tinham recursos para investir na indústria cultural e turística emergente. Foi, efetivamente, um processo tão duro quanto a retirada de invasores – e aproveitadores! - que foram atraídos pelas indústrias petroquímicas, e se instalaram em praias, encostas e outros lugares de Salvador, inclusive no Pelourinho. A população da cidade dobrou entre as décadas de 70 e 90 do séc. XX, de 01 para 02 milhões, e faltou água, luz, esgoto, moradia e trabalho.

O desconhecimento da atividade, e a informação manipulada, geraram a desconfiança em relação ao turismo - que ainda existe! - e que evoluiu para um sentimento de posse, agravado nos últimos anos por outro discurso oportunista e eleitoreiro, o racial, que dificulta o diálogo, o entendimento, e a solução dos reais problemas de todos. Os responsáveis por esta situação não têm interesse, competência, ou coragem de discuti-la, reconhecer os erros e prejuízos causados à cidade, e reverte-la. O objetivo era o voto, o poder e o dinheiro, e só ganharam eles. O negro, branco ou mestiço pobre que acreditou, e deu “um voto de confiança”, vive em situação muito pior.

De quem é o Pelourinho? Ele sempre foi assim? Como explicar a existência deste lugar? O bairro é do município! O Centro Histórico, Patrimônio da Humanidade, é responsabilidade das três esferas de governo que deveriam apoiar um órgão gestor, que não existe em Salvador. Atualmente o Pelourinho está ligado a Secretaria de Cultura do Estado, mas quem manipula as milionárias verbas que ele tem direito é a Secretaria de Turismo. Muitos casarões pertencem ao Estado! Alguém está desobedecendo a Lei de Tombamento que obriga o Estado a recuperar o casarão que o proprietário não pode, para isto há recursos. Também está ferindo o Código Mundial de Ética do Turismo, assinado pelo Brasil, e que lhe garante verbas, além da própria Constituição brasileira.

O Pelourinho não foi sempre assim! No início tudo foi improvisado com madeira, barro e palha de coqueiros, e cercado de muralhas, depois houve a “modernização” do século XVII, com o dinheiro do açúcar e das minas. São exemplos desta época o edifício da Câmara e a Catedral, entre outros, todos no mesmo estilo e brancos. Os casarões coloridos são predominantemente dos séculos XVIII e XIX, apesar do início da decadência do lugar, com a transferência da capital e as mudanças na economia. A explicação para a existência do Pelourinho é, ironicamente, a falta de atividades, dinheiro e interesses para “modernizar” outra vez, mesmo com o ciclo do cacau e a descoberta do petróleo. Atualmente ele é vital para a cultura e a economia do município.

No séc. XX o turismo se expandiu com o uso do avião, o transito de pessoas nos atrativos se tornou mais intenso, e surgiu a preocupação com o efeito da atividade sobre estes lugares, monumentos e culturas. Em 1972 houve a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, organizada pela UNESCO, em Estocolmo, onde foi aprovada a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural. Teve início o processo de identificação dos símbolos e atrativos que movimentam o turismo, foram elaboradas as leis do tombamento, e muitos lugares foram transformados em Patrimônio da Humanidade, já são 936, 19 deles no Brasil. Entretanto, até hoje, muitas pessoas consideram o turismo, predador. Coisa de rico, supérfluo!

Depois de 40 anos de faculdades de turismo e milhares de turismólogos ignorados completamente pelo Estado brasileiro, muitos estudos, e muitas discussões – alguns subutilizados ou “escondidos” pela USP, FGV e Min. Turismo – muitas pessoas já reconhecem a força econômica, a importância cultural, e a responsabilidade social da atividade. É quase 10% do PIB mundial, e fomenta outras 50 atividades, sem agredir o meio ambiente. O Pelourinho é a âncora do turismo da região e um motivo para muitos estrangeiros virem ao Brasil. Podem-se criar outros atrativos, mas tem que cuidar do Pelourinho. Sua ruína provocou a afastamento do turista, e a ruína de muitos baianos.

Não é demais dizer que o Pelourinho tem mais atrativos e potencial turístico que muitos outros lugares famosos no mundo, que também são freqüentados pelos “gestores” de Salvador. Não foi por acaso que Jorge Amado conquistou gigantes do pensamento, da literatura, do cinema e televisão, e das artes. O escritor falou das qualidades do povo colorido formado por exploradores e explorados, necessitados de comunicação e solidariedade, com carências que até hoje não foram atendidas, e que encontrou sua própria maneira de superar-se e impor-se. Sem mentiras, com trabalho e dignidade.

O candomblé, de origem africana, mas, desconhecido, discriminado e hostilizado por muitas pessoas que falam de racismo, deu “régua e compasso” para o pensamento baiano, preparou e revelou líderes e artistas, deu origem a muitas manifestações que são conhecidas no mundo e que sustentam milhares de baianos, emprestou a maioria dos símbolos explorados pelo turismo, principalmente a música e a culinária, e isto o mundo quer ver. Há muitos outros lugares bonitos, limpos e seguros, e sexo! Porém, milhões de pessoas pelo mundo afora querem ver “o que é que a Bahia tem”, não as baianas!

O povo, logicamente, é parte indissociável do conjunto econômico-social-cultural do Pelourinho. Moradores, freqüentadores, patrões e empregados, estudantes e artistas, boêmios, mas, contraditoriamente, discursos pseudo humanistas, o afastou mais ainda. Não foi a reforma, nem o turismo! Ao contrário do que dizem, o turismo atraiu muito mais pessoas ao lugar, deu trabalho a muitos, e facilitou o intercâmbio cultural através do contato com os ‘gringos”. É falsa, oportunista e irresponsável esta alegação de ‘elitização’, ‘parque temático’, ‘shopping’, ‘turistização’, ‘branqueamento’, ‘turismo sexual’, e outras tantas bobagens ditas, no mínimo, por desconhecimento da dinâmica da indústria cultural e turística.

O que garantiria a sustentabilidade do Pelourinho? Recuperar os casarões e passar para “o pobre povo, cada vez mais pobre”? Que não é proprietário, não os conservariam, nem explorariam? O lugar deveria ser mantido com dinheiro do contribuinte, que vê todos os dias seu dinheiro ser desviado pelos falsos socialistas? Ou o ideal são atividades que eduque, forme, revele, ocupe e sustente dignamente? Que gere impostos e outros benefícios para toda a cidade, e sua população? Salvador precisa discutir isto!

Salvador pode sair na frente de outras cidades criando leis que implante o ensino do turismo nas escolas do município, garanta o lugar do turismólogo no mercado de trabalho, e incentive no Pelourinho a instalação de faculdades, escolas de música, dança, artes, teatro, idiomas, e outras ligadas à cultura, transformando-o num centro cultural gerador de dinheiro, idéias, profissionais, artistas e líderes, como sempre foi. E, principalmente, promova a interação de baianos e turistas, brasileiros e estrangeiros, negros e brancos, ricos e pobres. Que seja lugar de criadores, não de predadores!

O autor é agente de turismo em Salvador