Devaneios da Faxineira de Ilusões e o Menino que se foi

Ana Virgínia Santiago
Divulgação

A solidão gira em torno do meu mundo e é mansa, já faz parte  de minha existência e, por mais difícil de entender, já é companheira..

Assustada, escuto de minha alma o prenúncio de um despertar, de um desencantar, de um não-querer no ar...

Entristecida, porém, consciente pois a minha vida sempre foi formada por etapas, sustos, acontecimentos, sonhos encantados, asas ícarianas derretidas pelo inclemente sol a desafio, exigo-me pacificação interior.

Inquieta, eu busco respostas para os meus mergulhos e lamentos de alma doída. Quem responderá aos meus prantos?

Quem  percorrerá o meu labirinto emocional e tão cheio de encantos que não quiseram enxergar?

Como entender os tortuosos caminhos borgeanos que parecem ser meus, quem?

 

A noite já apareceu.

Acomodada em meu estado solitário e observando a encantada visão da lua, das estrelas e de Vênus, sussurro recados silenciosos.

Quem poderá ouvi-los a não ser a minha própria alma?

Silente, constato que a noite já está enluarada de sono...

Faxineira de sonhos, continuo a insistir no estar acordada. Os meus pensamentos permanecem acesos, antevendo o fim das horas noturnas, a solidificação de um rompimento e a  confirmação de que a vida está findando, sentindo que é hora,  como a manhã que já chegará, de anunciar madrugadas. Penso que  também assim são a vida, o homem, os sentimentos, os amores, as palavras, as mentiras e as ações. Obedecem ao ciclo natural: chegam e vão embora. Deixam rastros de luz ou escuridão e somem.

O sono não chega para mim, Faxineira que guarda as ilusões nas gavetas afetivas. Alerta-me para os bloqueios que inventaram como impedimento à plenitude dos desejos e da paixão, que dá as mãos ao amor e ao sentimento amadurecido de seres  impossibilitados de vivenciar o mundo da felicidade, por estar escuro demais.

Encantada pela irreal vontade de sobrevoar outros espaços, pois a melancolia e a nostálgica opção de escolha na vida não me permitem que realize esse sonho, viro caracol, embalando os meus sentimentos, guardando todas as palavras que poderiam ser ditas e nunca quiseram ouvi-las, sentindo, embora na noite, o meu sol interior brilhar, que só a mim pertence, só a mim acarinha, só a mim enxerga, só a mim quer. E insisto em não dormir. Porque, eu,  Faxineira de Ilusões, continuo a sonhar.

 

A noite amplia o seu poder. Hoje, minha alma está macerada por uma dor alheia que a solidariedade e o bem querer nos aproxima. Uma dor que paralisa e angustia. Uma dor que testa a fé e os valores que acreditamos.
Um menino morreu!  É preciso silêncio respeitoso... 

Seu corpo inerte alerta para as mazelas que guardamos em nossos corações e geralmente colocamos amarras para perceberem. Todos nós temos gritos presos! Todos nós, todos nós.

Um menino morreu e a sua essência permanece intacta, querida, inesquecível, porque é necessário que deixe companhia para quem chora a sua perda.

 

A noite está calma, clima ameno, céu iluminado, a lua  jogando todo o seu fascínio para seres frágeis que se deixam enfeitiçar e gostam de Vênus. Ainda.

A noite está silenciosa, regida apenas pela música que faz bem e pela tristeza por um Menino que se foi.

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Já é um novo dia... não sei porque não adormeço com a noite jovem iniciando a sua trajetória. É como se não quisesse deixar de respirar todos os momentos de minha vida que vão passando e eu preciso vivê-la, usufruí-la antes que chegue o momento de adormecer na perenidade e não mais acordar...

A tarde foi muito intensa para mim... tensa em uns momentos, atribulada em outros. Mas vou catando a cada instante os farrapos de ilusões que teimei em semear, como se fosse uma vendedora de sonhos que se descobriu amputada em seu cantar e deixou cair o que acreditava e pensa que nunca existiu. Por isso vou catando  os pensamentos, os desejos, as ânsias, os temores, a tão próxima queda no espaço abismal... Por isso  teimo em sonhar...

Os sonhos são tão importantes! O seu papel, talvez o mais fundamental, é criar no psiquismo de um ser magoado uma espécie de equilíbrio compensador. Por isso continuo catando as suas migalhas que  atravessam o sono e passam a existir até em minha vida acordada. Não se pode dar vida à carência de sonhos, para não criar desequilíbrios... Não sonhar faz tanto mal!

O dia chegado já pede licença ao que foi dormir.

Precisa dar vazão à sua volúpia: antecipar outros que são dias feitos, também para a primeira conjugação. sonhar... amar... trocar... chorar... voar... suavizar... martirizar... aguardar...

 

inutilizar... chegar... enganar... abraçar... olhar. Final de semana pode ser conjugado por tantos verbos!

A noite está calma, clima gostoso, céu iluminado, a lua jogando todo o seu fascínio para um ser frágil que se deixa enfeitiçar e ainda gosta de Vênus...

É noite  e um Menino se foi.

A autora Ana Virgínia Santiago é jornalista, poeta e cronista no sul da Bahia