A volta e o Anjo

Ana Virgínia Santiago
Divulgação

- Agora retorno ao meu povoado... Precisei parar.

Arrumo meus instrumentos de trabalho para novamente andar, olhar, cuidar.

Faxineira, teimo em carregar nos braços as ilusões evitando que morram, sendo guardiã da imaginação, fortaleza para o amparo neste momento de voltar.

Porque, sempre dói voltar..

Relembrar alguns percalços ultrapassados, olhares tristes,  frágeis esperanças.

Machucam as dores anímicas, as lembranças doidas e impossíveis de serem esquecidas.

Sempre dói voltar... aos momentos que foram degraus de amadurecimento.

 

Sempre dói voltar...

Após uma dor vem a amenizada esperança de não ter os mesmos olhares, de não ouvir os silêncios amargurados, de conter lágrimas de desânimo e desespero, de não reencontrar o que doeu.

Quando a angústia absorve nossos pensamentos cegando nossos outros olhares é vital parar e deixar que a alma nos guie.  Agarra-se, então à possibilidade das quimeras, cria-se mitos interiores para a força emergir, para a fé ficar solidificada e, num instante precioso e inesperado, agarrar a vida com ânsia de retornar e vencer.

Nesses momentos, chegou-me um Anjo.

 

Por meus olhos  passam fatos, pessoas significativas que estimularam a minha certeza de ultrapassar as barreiras da dor e do desengano, apagando de minha memória as atitudes más de algumas pessoas que viviam (e vivem) em torno do mundo em que habito...

Reprimi os meus desejos de retorno ao que vivi e convivi, pois não sou Faxineira de Ilusões? Não cumpro a missão de limpar, esfregar, polir, espanar e destruir a sujeira que faz mal?

 

Sempre dói voltar...

Revirar as lembranças, recortar e jogar fora momentos de desespero, lembrar de horas infindáveis que pareciam nunca atingir a calmaria... Por isso dói voltar.

A tranquilidade do existir vem sempre com o lembrar do Anjo que me salvou num tempo em que achava nunca acabar.

Lembro-me Dele que sempre aparecia num esplendor de paz como se soprasse em meus ouvidos a certeza de tudo retornar melhor.

Ficava calado trazendo-me mensagens diretas à minh’alma induzindo ao meu coração tão sofrido que era obrigação vivenciar a felicidade.

Nos momentos mais angustiantes eu o via chegar, manso, ouvindo-me silenciosamente para, depois, pousar suas mãos em minhas mãos mostrando-me sem uma palavra sequer o que eu precisava fazer.

Ele desdobrava-se em vários sob a forma de presenças diárias,  da Fada das Flores, que, apesar das dores próprias, de longe, ficava presente em meu coração com suas palavras de quem sabia o que eu passava.

Era o meu bálsamo, a minha ilha de paz, as minhas muletas emocionais.

Quando a incompreensão se impunha em minha mente Ele chegava. Translúcido, calmo, encantado. Mostrava-me o rio com seus recados que todas as manhãs renovava sua trajetória e, para internalizar isso em mim, banhava-se num encontro de etéreo e natureza parecendo sempre dialogar num silêncio de paz.

O  Anjo que me chegou quando mais precisava atrai quem precisa de suas  palavras  e de suas intuições. Plantava com amor e sempre semeava amizades. Tinha as mãos finas, porém trabalhava com o afinco e a segurança de um camponês. Era como  se fossemos discípulos dele, um Mestre que não tocávamos mas sabíamos que era verdadeiro.

- Agora retorno ao meu povoado...

Precisei parar, apoiar nos devaneios o corpo que sentiu a alma arder  entender o momento de voar, voar, voar para sentir a essência de seres alados que fortalecem quem deles precisa.

Ainda fragilizada com os respingos do que vivi, temo reencontrar pessoas que pensam e traduzem o mal porque são explicações da miséria humana e dói relembrar.

Mas como Faxineira de Ilusões , reabasteço a alma de uma energia que me faz guerreira-humana para suportar os desamores  e sonhar com uma poderosa capacidade de ser guardiã da imaginação. Ver tudo diferente, ingratidões dizimadas, elementos nocivos  neutralizados como estátuas de sal no mesmo destino  bíblico da mulher de Lot...

Imaginar na minha função de ser Faxineira de Ilusões... Limpar, aspirar palavras más, desinfetar corações empedernidos, mentes cruéis, sanguessugas humanizadas e insensíveis.

Agora  retorno ao meu povoado...

Trabalhar, polir, varrer, queimar os monturos.

Ana Virgínia Santiago é jornalista, poeta e cronista no sul da Bahia