A chuva e as lembranças de uma mulher

Ana Virgínia Santiago
Divulgação

Chovia aqui na minha aldeia quando ela chegou. Apareceu como os seres que são mistérios, silenciosa e acalentando os próprios sonhos, firmando o olhar para o infinito buscando respostas.

Era uma chuva fina negando a estação do sol e do sal .

Reconhecia aquela mulher.

Ela andava na fina chuva como se estivesse lavando as suas dúvidas. Parava pensativa e seguia seu caminho.

Levando consigo a chuva. Os seus seus questionamentos..

Parou abrigando-se do que já lhe incomodava, porque precisava descansar. 

Aproximei-me e a reconheci!

Lembro-me tanto dela...

Lembro-me muito. Há tempos atrás a conheci. Tinha o sorriso  mais encantador que poderia existir e o brilho nos olhos como só as crianças possuem quando descobrem a vida em sua plenitude ao receber um mimo.

Quando a conheci acalentava nos braços toda a esperança encantada guardando na alma os sentimentos que fazem o coração inventar asas para, sonhando, poder voar.

Por que agora estava tão triste?  Que solidão hipnotizava seus pensamentos que tanto a desencantou?

Tive vontade de perguntar .

E a vida?

Ah! A vida continuava o seu percurso... amanhecia como o dia falando de transformações; anoitecia como a noite, abrigava os desencantos, as alegrias e as histórias dos encontros e desencontros, das perguntas sem respostas.

A vida? Continuava a sua missão.

Relembro-me dela, quando a conheci.

A tarde já estava preparando a sua despedida diária  para o anoitecer , vestindo-se de por do sol para saudar a noite.

Mesmo acinzentado o céu permanecia bonito lançando um  desafio para os limites humanos  para um mundo icariano em que o “nunca” não só pertence  ao habitat de Peter Pan  mas pode ter outra simbologia... alimento dos sonhos que precisam ser reais.

Ah! Aquela mulher.

Sempre tinha as mãos sob a forma de conchas agradecendo e acreditando que a palavra era a possibilidade  maior de acreditar na verdade viável.

Carregava a juventude com a vitalidade dos seres que  aguardam o momento de abrir janelas para o horizonte vislumbrando frestas iluminadas que dão sentido maior à vida.

Quando ela chegou na aldeia a chuva também era fina e  a sua essência embalava as querências pedindo respostas às suas perguntas astuciosas.

Esta mulher que está triste e a reencontro chegou com a chuva fina.

Entardecia... o dia refletia em seu coração encharcado de agonias e perturbando a sua louca porém controlada vontade de arrumar na gaveta etérea de sua vida as inúmeras formas ou máscaras dissimuladas( para não violar as suas verdades), os gritos existenciais que a sufocavam (tanto torpor, tantas tristezas) e a deixavam  em  solidão.

Por que  era tão indefesa em sua imensa dor?

Que couraça  a abrigava e a guiava para os seus porões anímicos - fiéis e silenciosos confidentes -  se vivia todas as possibilidades exsistenciais que dilaceravam a sua alma pela dor imposta pelo destinou ou talvez por  um outro “eu” que a escolheu?

Tive a impressão que ela chorava pela vida macerada que os desacertos e as angústias provocados pelas mentiras e desrespeitos, pelas ações torpes a transformaram no próprio esquecimento, andando ao contrário, na contramão da vida em total ausência.

Revejo esta mulher no mesmo momento agora.

Parada, diante da chuva fina com o olhar tão distante que me enterneceu.  O que olhava ou buscava encontrar?

Parada, aguardava que a chuva finalizasse seu ciclo abraçando a sua vastidão de sentimentos como se estivesse amparando a sua fraqueza e criando forças para seguir...

Era uma tarde fria, quase anoitecendo.

Chuva fina , duas mulheres.

Uma observando, encantada com o entardecer, sentindo  o bonito ritual de deuses e musas (inspiração de poetas, encantados e sonhadores) impossível de ser vivenciado por simples mortais insistindo  em continuar a viver, sonhar, ser. Outra , pensando na mudança que mexeu com seu coração carregando nos braços, com muito cuidado, a desesperança  dos seres que um dia acreditaram na possibilidade de ser feliz, que  planejava continuar a viver, a crer, a ser.

Chovia aqui na minha aldeia.

Ana Virgínia Santiago é jornalista, poeta e cronista no sul da Bahia.