O passeio da Faxineira de Ilusões

Ana Virgínia Santiago
Divulgação

Estive tão distante!

A vida, às vezes, belisca minh’alma para acordá-la do encantado, que, muitas vezes a faz adormecer e fortalecer a sua essência.

Por isso deixei as ferramentas  do polir, limpar, guardar, levantar os tapetes,  aspirar os cantos impuros...

Por isso dei o tempo para a alma assentar seu verdadeiro papel.

Estive tão distante!

Exercitando o porvir, soltando as amarras do meu coração macerado de saudades, angustiado pela impotência de dirimir desentendimentos e sobressaltado pelo que sente ao seu entorno.

Estive distante para treiná-lo e novamente fazê-lo voar. 

Estive tão distante!

Fui a viagens amenas, parei em aldeias onde  descansei em praças limpas e enfeitadas e passeei por ruas cuidadas e vigiadas. E senti tantas saudades...

Distante, deixei que a vida beliscasse a minh’alma para acordá-la do encantado e respaldar o meu coração valente...

Agora estou em minha aldeia, retornando ao talvez perdido mundo proustiano de minha vida que tenta  entender seres afins que se distanciaram, explicações de desamor, esquecimento de lições afetivas.

Agora estou aqui!

Diante da realidade que dói, porém necessária à continuação das vidas.

Agora estou aqui, numa manhã que chegou com chuva e prossegue em sua rotina... reger os pássaros que,indiferentes ao tempo, cantam e me encantam; ao apressado homem que não tem tempo para nada, à mulher que anda, anda, conversa consigo mesma e espanta seus demônios vitais.

A manhã , como uma maestrina, vai direcionando seus  coordenados...

Mesmo com chuva fina o homem que diariamente passeia pela orla faz seu trajeto, as meninas que desfilam e exibem seus corpos e suas celulites competindo com cores e modismos sorriem e forçam naturalidade, carros com irresponsáveis na direção invadem a faixa  especial e seguem aplaudindo a impunidade.

Estive tão distante!

Soube notícias de céus longínquos, fiz contatos com seres especiais e, entristecida, tentei amenizar as dores de quem está tão longe agora e nada pode fazer...

Eu, Faxineira de Ilusões, depois de tanto tempo distante procuro alguma luz em minha querida aldeia e nada encontro.

Ruas sujas e escuras, praças absurdamente feias e mal cuidadas, bancos quebrados, árvores que restam judiadas e a  insegurança estampada em cada pessoa que encontro, porque as ações delinquentes vão tomando rumo grandioso.

Até, quando?!

Vou andando na manhã chuvosa que não perde seu encanto porque é enfeitada pela beleza natural de minha aldeia e os pássaros entoam seus cantos e executam seus vôos para nos alegrar.

A chuva vai tomando o seu lugar. As ruas começam a alagar invadindo passeios, causando transtornos  e derramando interrogações ao poder...

Como calar diante de tanta insensibilidade, por tanto desamor pela menina centenária que tem proteção de santos e deuses  e que já teve até título nobre de princesa?

Hoje, a manhã chega com chuva...

Amanhã, novo dia, chegará saudando águas perfumadas com desejos de paz.

Que elas cheguem para limpar minha aldeia!

Odoiá!

A autora Ana Virgínia Santiago é jornalista, poeta, cronista e escritora no sul da Bahia.