Minha esperança

Ana Virgínia Santiago
Divulgação

É manhã cedinho...minha aldeia acordou.

Cedo  atravesso o caminho para o labor que tanto me faz bem.

Limpar, varrer, absorver ,enfeitar. Enfeitar?!

Minha função é essa... Vivo entre a utopia e a realidade que embala a minha essência. É preciso sonhar para enfrentar o que é palpável.

Sou Faxineira de Ilusões, Varredora de pesadelos e acalentadora de sonhos.

Tenho a função de eliminar as mazelas, aspirar os lixos  morais, tirá-los debaixo dos bancos,  enxaguar das esquinas a falta de educação de um povo que muito reclama, que tanto cobra, porém desconhece gestos básicos de higiene e atiçam nas ruas as suas sujeiras...

 Diante de minha incredulidade pela falta de amor à minha aldeia fico  perplexa ao ver   amontoados sacos de lixo, sacolas plásticas abertas, todo tipo de objetos inúteis aos lares e jogados em qualquer canto, porque o amor cantado em prosa e versos é mentiroso. Ninguém tem amor e carinho sem dedicar limpeza de intenções, sem o dever dos cuidados. 

Como amar se só  escutamos gritos clamando direitos?

É manhã cedinho...minha aldeia acordou.

Talvez por ter vivido épocas em que o bem público era respeitado, em que o diálogo decente era possível e  os aldeões tornavam-se uma só corrente de  compreensíveis gestos por nossa aldeia, policio-me para não sentir desilusão e descrédito pelo futuro de  meu abrigo e de tantos que aqui vivem. Preciso jogar bem para longe esse lampejo de decepção.

É manhã cedinho... minha aldeia acordou.

Olho o céu e a resposta de uma Energia Maior inebria o meu coração. Como ter desesperança se todos os dias, na rotina do meu acordar eu ouço tantos pássaros que cantam o seu bom dia e dão vôos rasos  tão pertinho de mim como se explicassem que ainda vale a pena?

Como não sentir vontade de vida pujante se, atém manhã chuvosa o céu transborda de matizes mostrando um lado das cores sombrias?

É manhã cedinho...minha aldeia acordou.

O meu caminho é tão bonito...Passo por pessoas que buscam em suas passadas a saúde restabelecida, algumas e poucas desfilam suas fantasias para ficarem “ saradas”    competindo com Narciso, sorrio com os estudantes compenetrados que possuem uma meta de vida, uns destorcendo a farda que usam.

Vejo namorados que , de mãos dadas, andam compassados para seus trabalhos, observo trabalhadores de artes imprescindíveis às construções. Ah! Como eles  trafegam displicentes em suas bicicletas, muitos desconhecendo as três cores dos semáforos e estimulam aos xingamentos matinais?        

Quero varre, lavar, limpar os dejetos que são deixados à noite e na madrugada.

Choro pelos que dormem nas calçadas e se cobrem de pedaços de papelão.

Choro pelo  Homem que, em pleno sol, dorme sobre  o passeio imundo e continua invisível para as  pessoas que , indiferentes, por ele passam. Dia após dia ali está ele…

Choro pela Mulher que cedinho sai do cais, trôpega,caminhando para lugar nenhum, a esmo, dopada , mexendo no lixo.

Choro pela Menina, tantas vezes mãe sem  ao menos conhecer o significado da maternidade. A acompanho desde pequena, jogada à degradação, à promiscuidade e às drogas  porque um canalha  que deveria ter o papel de acolhedor  e protetor a expôs à mutilação de seus sonhos infantis e a tornou mulher antes de vivenciar a adolescência., escravizada pela falta de escrúpulos de homens-animais…

Uma Menina que recentemente não teve nem a dignidade do parir dentro de uma maternidade, entregando o seu filho ao mundo no passeio hospitalar...

Paro , converso com ela e sinto dor pelo que a Menina é... E  a alimento sabendo que é paliativo e  me sinto muito mal.

Paro numa praça e sinto pena das deturpações, dos enfrentamentos, das enganosas presenças que usam muitas pessoas pela vingança, pela incapacidade de reconhecer derrotas.

Em que momento a minha aldeia se perdeu na beleza de suas praças, nas árvores decoradas, nas calçadas e prédios públicos respeitados?

Por que não termos de volta os jardins tão bonitos, as pessoas sentindo prazer em passear, em sentir a aldeia que apesar de tudo, permanece linda em sua essência natural?

É manhã cedinho...minha aldeia acordou.

Sou Faxineira de Ilusões, Varredora de pesadelos e acalentadora de sonhos.

Quero acreditar que ainda reverei minha aldeia bonita em sua avenida principal, grama cortada e não servindo de alimento para animais.

Quero ainda acreditar que as luzes voltarão a enfeitá-la à noite dando condições de passeios e caminhadas seguros.

Sinto esperança pela lição de amor e doação que um jovem casal me dá a cada luz que chega com um novo anjo em sua casa, num lar cheio de solidariedade e respeito humanos.

Sento numa praça e penso neles dois. Ele, um homem que vi ainda quase menino. Olhos espelhando a sua alma, pureza infantil ainda preservada na responsabilidade adulta de pai e na irreverencia competente da profissão o que escolheu e  honra tão bem.

Minha aldeia já acordou.

Preciso começar a limpar, varrer, jogar água corrente nos passeios enlameados pela sujeira e também pelas passadas de tantos indignos.

Não sou Faxineira de Ilusões, Varredora de pesadelos e acalentadora de sonhos?

Sou renascimento de emoções e de pensamentos porque o exemplo que tenho do jovem casal amplia o meu desejo de bem querer e  me alimento da esperança acreditando que reverei e terei a minha aldeia eterna princesa de quem a ama.

Ana Virgínia Santiago é jornalista, poeta, cronista e escritora